Submit to FacebookSubmit to Google PlusSubmit to TwitterSubmit to LinkedIn
giustizia martelloA comunidade científica pode colaborar com a busca de soluções para modernizar o Judiciário brasileiro, de modo a assegurar a continuidade da prestação do serviço jurisdicional com a eficiência e a agilidade desejadas pela sociedade, avalia o desembargador José Renato Nalini.
Presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) – a maior corte judicial do país e do mundo, composta por 360 desembargadores, em um sistema que contém ainda mais de 2 mil magistrados de primeiro grau e quase 50 mil funcionários –, Nalini vem alertando para um problema que classifica como uma epidemia de judicialização no Brasil, evidenciada pelo volume de quase 100 milhões de processos em curso atualmente no país.

A fim de chamar a atenção da sociedade para o problema e para os seus impactos no sistema Judiciário, o desembargador criou em agosto do ano passado, em seu primeiro ano de mandato de dois anos à frente do tribunal, o Conselho Consultivo Interinstitucional do TJSP.

O Conselho é composto por representantes de diversos setores da sociedade civil, como Celso Lafer, presidente da FAPESP, além dos integrantes das Polícias Civil e Militar, Poderes Legislativo e Executivo, Procuradoria-Geral do Estado, Ministério Público, Defensoria Pública, Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e do próprio TJSP.

Nesta entrevista concedida à Agência FAPESP, Nalini explica quais são os objetivos do Conselho e como a comunidade científica pode contribuir na busca de soluções para equacionar alguns dos problemas enfrentados atualmente pela Justiça brasileira.

 
Agência FAPESP – O senhor vem chamando a atenção para a epidemia de judicialização no Brasil, evidenciada pelo volume de quase 100 milhões de processos em curso atualmente no país e a existência de quase 800 mil advogados, 17 mil juízes, 15 mil promotores e 6 mil defensores públicos. A que o senhor atribui esse fenômeno?
José Renato Nalini – Acho que, em parte, é resultado do anacronismo da formação jurídica no país. As duas primeiras Escolas de Direito criadas no Brasil [a Faculdade de Direito de São Paulo e a Faculdade de Direito do Recife, ambas fundadas em 1827], já começaram antigas e defasadas, porque iniciaram seguindo o modelo da Faculdade de Direito de Coimbra, de Portugal, [criada em 1290] que, por sua vez, foi inspirada no modelo da Faculdade de Direito da Universidade de Bologna, na Itália, instituído em 1200, embora o curso de Direito já existisse no mundo desde o ano 800. Hoje, o Brasil tem mais faculdades de Direito do que a soma de todos os demais países do mundo, que reproduzem um modelo de ensino prelecional, compartimentado e sem muita preocupação com a realidade e com a formação da cidadania. Além disso, há uma cultura de proliferação de direitos no país em que todos têm direitos, mas quase ninguém tem obrigações, deveres e responsabilidades, e toda a sociedade fica sob a tutela de um Estado provedor que se assenhoreou de uma série de atribuições. O Estado assumiu o papel de satisfazer desde os interesses mais imediatos e menores até questões maiores da sociedade, que fica aguardando as soluções advirem dele. O inciso XXXV do artigo quinto da Constituição Federal de 1988 [conhecido como o princípio do acesso à Justiça] estabeleceu que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Com isso, escancarou-se a porta da Justiça, sem levar em conta que a Justiça brasileira é tão sofisticada ao ponto de ter quatro instâncias recursais, cinco Justiças – sendo duas delas chamadas comuns que se digladiam por causa de suas competências – e lides [litígios] que podem durar até 20 anos.

Agência FAPESP – A implementação nos últimos anos de iniciativas de mediação, conciliação e arbitragem de conflitos, antes da judicialização, não tem sido suficiente para desafogar os tribunais do volume de processos em tramitação?
Nalini – Essas iniciativas, além de diversas outras que foram transplantadas nos últimos anos de países como os Estados Unidos, que possuem mais de 30 estratégias diferentes de resolução alternativa de litígios ou ADR, em inglês, contribuem para reduzir as demandas do Judiciário. Mas não acho que esse seja o aspecto mais importante para solucionar o problema da judicialização no Brasil. O ponto mais importante é fazer com que a sociedade acorde para a necessidade de assumir obrigações, deveres e responsabilidades. Caso contrário, se continuarmos com essa legião de tutelados pelo Estado, nunca teremos democracia participativa. Se os cidadãos não souberem resolver uma questiúncula de interesse pessoal, relacionada ao microcosmo de suas vidas, sem recorrerem ao Estado, como poderão influenciar no destino da República, além de escolher e fiscalizar as ações de seus representantes?

Agência FAPESP – Quais têm sido os impactos da judicialização da vida nacional no sistema Judiciário brasileiro?
Nalini – Há várias consequências evidentes. A primeira delas é o paradoxo de as pessoas procurarem cada vez mais a Justiça e, em contrapartida, não confiarem nela. No início de junho a FGV [Fundação Getúlio Vargas] publicou os resultados da nova pesquisa do Índice de Confiança na Justiça Brasileira. O levantamento apontou que a confiança do brasileiro no Judiciário caiu de 30% em 2013 para 25% em 2014. Isso é uma evidência de que o sistema é disfuncional e não está solucionando os litígios da forma esperada. Com o intuito de fazer a fila de processos em tramitação andar tentou-se passar na frente os litígios movidos por pessoas idosas. O problema, contudo, é que fila de processos de pessoas com mais de 60 anos no país virou uma fila paralela, como a dos precatórios alimentares, porque tem muita gente com essa idade ou se ainda não tem quando começou a litigar certamente completará 60 anos até o processo ser julgado. Mas o segundo impacto que eu acho mais sério da judicialização da vida nacional é que, ao não funcionar por estar assoberbado com milhões de causas para serem julgadas, o Judiciário acaba fazendo o jogo de quem não tem razão. Quem realmente tem razão sofre muito na Justiça e acaba sofrendo o ônus da ação. Já quem não tem razão e não quer cumprir suas obrigações, como honrar contratos firmados, acaba se beneficiando de todo um tempo que o mercado, as instituições financeiras ou os credores não ofereceriam, que é o tempo de tramitação da ação. Em países civilizados vemos a pessoa ofendida dizer para o ofensor “nos vemos no tribunal, diante de um juiz”. Aqui é o ofensor que fala para o ofendido procurar seus direitos na Justiça pela certeza de que o sistema judiciário não irá resolver em um tempo razoável. Temos uma democracia que apregoa que os tribunais estão funcionando, que o Judiciário é independente e todo mundo consegue entrar em juízo. Mas não interessa que o problema não seja resolvido. Se o Judiciário fosse reservado para as verdadeiras complexidades talvez teria melhores condições de funcionar.

Agência FAPESP – Quantos processos tramitam hoje no Tribunal de Justiça de São Paulo, que é o maior do país e do mundo, com 360 desembargadores, mais de 2 mil magistrados de primeiro grau e quase 50 mil funcionários?
Nalini – São 25 milhões de processos. Os números oscilam porque até o controle é falível. Eu falava que, desse total de processos, 14 milhões são execuções fiscais [cobranças judiciais para recuperar valores devidos pelo cidadão ao Estado, como dívidas de tributos e multas], mas recentemente me corrigiram e disseram que o número certo é 11,650 milhões de processos. Perguntei onde foram parar a diferença de mais de 2 milhões de processos e me responderam que foram arquivados. De qualquer forma, esses 11,650 milhões de processos são nefastos para a vida, para o oxigênio da Justiça, porque uma execução fiscal custa, no mínimo, entre R$ 890 e R$ 1,3 mil a tramitação. Isso leva à conclusão de que fazer uma execução fiscal para cobrar uma dívida inferior a esses valores é jogar dinheiro fora. Mas quando se começa a falar em desjudicialização da execução fiscal no Brasil levantam-se milhares de vozes contrárias. Com isso, continua existindo um sistema em que cada município descarrega, normalmente a cada final de ano, milhões de certidões de dívida ativa sobre o Judiciário que, por sua vez, não tem condições de movimentar essa quantidade de processos e de fazer um trabalho que não é atribuição dele.

Agência FAPESP – Essas questões têm sido discutidas nas Faculdades de Direito?
Nalini – Muito pouco. Há uma resistência muito grande da visão tradicional da advocacia no Brasil, que está erigida sobre a convicção de que o advogado é quem litiga e processa, e não quem pacifica e concilia. Eu tinha muita esperança de que Escolas de Direito fundadas recentemente no país pudessem discutir mais a fundo essas questões, mas percebi que elas têm maior preocupação com a litigância sofisticada, com a litigância empresarial. Não se voltaram a discutir essas questões, mas sim preparar os profissionais de Direito a fazerem um bom litígio, oferecer uma boa demanda ou se defenderem diante das demandas de trabalho. Na verdade, as Escolas de Direito no país têm se convertido em um curso preparatório para o exame da OAB [Ordem dos Advogados do Brasil] e os cursinhos estão formando profissionais para as carreiras jurídicas, se valendo da previsibilidade do recrutamento de juízes, promotores, defensores e procuradores. As Escolas de Direito acabam ensinando mais do mesmo, como doutrina, jurisprudência e, quando surge uma lei nova, todo mundo fica debruçado sobre ela querendo entender sua aplicação prática, mas sem uma visão crítica. Ainda não pensam seriamente em uma profunda reforma do sistema Judiciário e da Justiça como um todo.

Agência FAPESP – O senhor criou no ano passado um Conselho Consultivo Interinstitucional do Tribunal de Justiça de São Paulo. Quais são os objetivos do Conselho?
Nalini – A primeira meta do Conselho foi chamar a atenção da sociedade para o fato de que o sistema Judiciário não está funcionando, e que os custos arcados por ela estão ficando cada vez maiores e podem ficar impagáveis. Este ano o Tribunal de Justiça de São Paulo recebeu R$ 8,7 bilhões de verba de custeio e, em junho, estávamos com um déficit orçamentário de R$ 900 milhões em razão dos gastos com pessoal. Nesse sentido, a criação do Conselho foi um chamamento ou quase um pedido de socorro, na verdade, para a lucidez da sociedade brasileira. Por isso, o Conselho tem representação múltipla, de vários setores da sociedade civil, mas daqueles, principalmente, que não têm contribuição do erário. Acho que já chegou o momento e até já passou a hora de repensarmos com coragem, sem nenhum temor e com ousadia e audácia o sistema de Justiça do país, porque se continuar assim contribuirá para aumentar o custo Brasil [o conjunto de dificuldades estruturais, burocráticas e econômicas que encarecem o investimento no Brasil]. Os investidores estrangeiros quando chegam ao país e ficam sabendo que há passivo trabalhista têm muito medo. Eles não entendem como uma rescisão de contrato de trabalho homologada junto ao sindicato do trabalhador pode vir com um carimbo dizendo que a homologação não impede o ex-empregado de entrar na Justiça posteriormente para reclamar alguma coisa que possa ser apurada. Diante desse cenário, precisamos pensar bem se o Direito está sendo usado como um instrumento de solução ou de institucionalização de problemas.

Agência FAPESP – Qual o balanço que o senhor já faz do Conselho?
Nalini – Eu acho que o Conselho, pelo menos, começou a chamar a atenção da sociedade para a gravidade dos problemas enfrentados pelo Judiciário atualmente. Até então a Justiça estava muito encastelada e, em contrapartida, a sociedade também estava muito silente e inerte, e o Conselho começou a alertá-la, ao menos. Se a sociedade achar que o atual modelo de Justiça tem que ser seguido, então prepare os bolsos porque a conta ficará cada vez maior. Acredito, entretanto, que é possível fazer mais com menos. Para isso é preciso corrigir as anomalias de um poder que cresceu empiricamente.

Agência FAPESP – Como a comunidade científica pode contribuir na busca de soluções para equacionar alguns dos problemas enfrentados pelo Judiciário?
Nalini – Estamos abertos a todas as contribuições e até é muito bom que tenham novos olhares sobre esse universo do Direito que foi sempre tão reservado, discreto e conservador e que, de certa forma, perdeu o contato com a realidade. Hoje fala-se muito na necessidade da realização das reformas política, tributária, trabalhista e da previdência social no Brasil. Mas a reforma da própria Justiça ainda não foi feita e se for realizada alavancaria essas outras. Tudo seria melhor se a Justiça funcionasse adequadamente. Por isso, esperamos que a comunidade científica participe ativamente do Conselho, que já conta com representantes de instituições como a Fipe [Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas do Departamento de Economia da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA-USP)]. Uma das coisas que a Fipe está nos ajudando no âmbito do Conselho, por exemplo, é verificar se os contratos firmados pelo Tribunal de Justiça de São Paulo estão adequados. Outra incumbência que receberam foi repensar o modelo de funcionalismo do tribunal, porque daqui a 20 anos não existirão mais funções como a de escrevente, oficial de Justiça, meirinho e aguazil, que são denominações medievais. No futuro precisaremos de analistas, desenvolvedores de softwares e de outros tipos de profissionais de áreas como a da tecnologia da informação. Outra solicitação que fizemos à Fipe foi avaliar tecnologias que têm potencial para mudar o sistema de Justiça como um todo nos próximos anos.

Agência FAPESP – Quais ações têm sido implementadas no Tribunal de Justiça de São Paulo para acelerar a tramitação de processos?
Nalini – Começamos a disseminar a conciliação. Estamos multiplicando os Centros Judiciais de Solução de Conflitos e Cidadania, incentivando a Polícia Civil a propagar os Núcleos Especiais Criminais [Necrim] e a Polícia Militar a resgatar o termo circunstanciado [procedimento substitutivo ao auto de prisão em flagrante delito para infrações penais cuja pena máxima seja igual ou inferior a dois anos de detenção]. Outro passo corajoso que demos foi a digitalização total dos processos judiciais em São Paulo, que começou em 2006 com a instalação na estação São Bento do metrô de um Juizado Especial. Esse processo veio avançando, meio devagar, porque existiam cinco sistemas de informatização na segunda instância, um para cada tribunal de alçada (hoje extintos), além de dois aqui no Tribunal de Justiça de São Paulo e outros 12 na primeira instância. Esses sistemas de informática não conversavam entre si. Fomos investindo e conseguimos criar um sistema único, que é o Sistema de Automação da Justiça, o SAJ. Também estamos fazendo, por nossa conta, a digitalização dos inquéritos que viram denúncia e continuando a acelerar o processo de informatização para que até dezembro deste ano não entrem mais processos em papel na Justiça de São Paulo. Ainda ficaremos com os 25 milhões de autos físicos, mas a tendência será acabar com os processos nesse meio.

Agência FAPESP – Como tem sido a transição dos processos em papel para o formato digital?
Nalini – No início surgiram muitas queixas, mas fomos acrescentando funcionalidades ao sistema de digitalização dos processos a cada dia e caminhando a passos bem seguros, mas não com a rapidez que gostaríamos, para facilitar o acesso aos processos pelo sistema. As vantagens da digitalização dos processos são inúmeras. É possível acessar os processos de qualquer lugar do mundo, em qualquer minuto e simultaneamente, ou seja, os advogados, o juiz e a parte podem consultá-los online concomitantemente e em tempo real. Com isso se elimina a necessidade de ter prateleiras para acomodar os processos e se economiza 696 toneladas de papel. Mas precisamos acelerar.

Agência FAPESP