
A ideia central do método de Decroly é a dos “centros de interesse” como eixos estruturantes do currículo, que permitem a expressão da motivação espontânea do aluno e, ao mesmo tempo, abrem caminho para a aquisição de novos conhecimentos.
O processo de aprendizagem se desdobraria em três fases: observação (não como técnica, mas como atitude diante da realidade), associação (possibilitando a integração no espaço e no tempo dos conhecimentos adquiridos por meio da observação) e expressão (concreta, por meio de desenho livre, de trabalhos manuais e outros; ou abstrata, por meio, por exemplo, do texto escrito ou da linguagem matemática).
Embora sejam pouco conhecidas fora do círculo dos especialistas em história da educação, as concepções de Decroly – ou, melhor, uma adaptação delas – tiveram grande difusão e repercussão na educação brasileira do fim dos anos 1920.
O tema foi tratado no artigo Translating Ovide Decroly’s ideas to Brazilian teachers, publicado por Alessandra Arce Hai, Frank Simon e Marc Depaepe na Paedagogica Historica, uma das principais revistas em história da educação.
Professora da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Hai escreveu o artigo no período em que atuou como professora visitante na Universidade Católica de Leuven, na Bélgica, com apoio de Bolsa de Pesquisa no Exterior da FAPESP.
Simon, professor emérito da Universidade de Ghent (Bélgica), e Depaepe, vice-reitor de Leuven, os dois coautores do artigo, são considerados os maiores especialistas na obra de Decroly.
“Nossa pesquisa buscou entender como as ideias de Decroly foram apropriadas, difundidas e transformadas no Brasil. As traduções de seus livros foram realizadas entre 1928 e 1930, ainda durante a vida de Decroly, em uma época na qual ocorreram no país várias reformas educacionais, buscando a inovação pedagógica”, disse Hai à Agência FAPESP.
Para esse processo, denominado “Movimento das Escolas Novas”, a metodologia dos “centros de interesse”, adaptada e simplificada conforme as condições da sociedade brasileira, forneceu importante aporte teórico e orientação prática.
O principal laboratório dessa experimentação pedagógica foi propiciado pela reforma educacional do Rio de Janeiro em 1928, com importante apoio de Fernando de Azevedo, na época diretor do Departamento de Instrução Pública do então Distrito Federal.
Segundo o artigo, havia, da parte de vários intelectuais da época, a opinião de que o Brasil ainda não era um país propriamente “civilizado”. Como medida “civilizadora” urgente, capaz de “republicanizar a república”, esses preconizavam uma combinação de educação e medicina, junto com medidas sanitárias e higiênicas.
“Fernando de Azevedo acrescentou o objetivo de produzir reformas sociais à escolarização, enfatizando a qualidade em vez de apenas trabalhar para eliminar o analfabetismo por meio da instrução”, ressaltam os pesquisadores. Azevedo e seus colaboradores consideravam que a escola produziria a pressão para as necessárias mudanças sociais.
Nesse contexto, a ideia de “centros de interesse” teve grande difusão e aplicação em programas de ensino no Rio de Janeiro e também em Minas Gerais. Artigos, livros e manuais para professores foram publicados. Conferências, seminários e cursos foram oferecidos. “O público-alvo era de professores do ensino primário e os responsáveis por aquilo que chamamos hoje de educação infantil”, disse Hai.
Centros de interesse
Como médico, Decroly estudou o desenvolvimento infantil com bastante detalhamento, tendo escrito várias obras nos campos da neurologia e da psicologia. E suas concepções pedagógicas foram embasadas nesses estudos.
“Mas a metodologia dos ‘centros de interesse’ foi adaptada no Brasil de forma bastante simplificada, como a possibilidade de o professor trabalhar com os alunos não por disciplinas mas por temáticas. A partir de uma temática, como, por exemplo, ‘animais’, o professor conduziria os alunos por várias áreas do conhecimento”, comentou Hai.
No artigo publicado na Paedagogica Historica, para interpretar a assimilação do pensamento de Decroly no contexto brasileiro, os autores recorreram à ideia da antropofagia, lembrando que o Manifesto Antropofágico, de Oswald de Andrade, foi publicado no mesmo ano de 1928.
Juntamente com outros teóricos da nova educação, como o norte-americano John Dewey (1859-1952) e o alemão Georg Kerschensteiner (1854-1932), o belga Decroly foi deglutido e digerido na ocasião, do “jeito brasileiro”.
Como reminiscência desse banquete antropofágico, restou para a educação brasileira da atualidade a metodologia dos projetos, como eixos capazes de perpassar a grade curricular, apontam os pesquisadores.
O artigo Translating Ovide Decroly’s ideas to Brazilian teachers (DOI:10.1080/00309230.2015.1021361), de Alessandra Arce Hai e outros, pode ser lido por assinantes da Paedagogica Historica em www.tandfonline.com/eprint/Htj99UQ9uAsRfiTDVNTu/full.
Agência FAPESP