Está instalada em uma casa que, durante a Segunda Guerra Mundial, foi diversas vezes utilizada como residência de fim de semana do então primeiro-ministro britânico Winston Churchill.
Os encontros promovidos pela Fundação Ditchley reúnem acadêmicos, diplomatas, empresários, líderes de organizações não governamentais, políticos e pessoas com conhecimento reconhecido sobre os temas discutidos e seguem o que se chama de “regras de Chatham”, pelas quais os participantes podem usar as informações e opiniões expressadas durante os encontros, mas não podem atribuí-las nem identificar quem as proferiu, tampouco revelar sua identificação. Isso permite que os debates transcorram em clima de grande franqueza.
Em 2006, o Brasil já havia sido tema de seminário similar promovido pela mesma organização. Na abertura dos trabalhos de 2014, foi observado que muitos dos problemas apontados oito anos atrás continuam em pauta.
Houve pouca concordância entre os participantes, em especial entre os brasileiros e os estrangeiros, sobre qual é o papel do Brasil no mundo e qual tem sido o seu desempenho no cenário internacional, o que permite uma conclusão inicial importante: existe um fosso entre a autopercepção do Brasil e a que os outros fazem dele.
Todos aceitam que o país fez enormes progressos nos últimos 20 anos, como resultado de um amplo consenso nacional que se estabeleceu em torno de princípios básicos em política e macroeconomia, e que essa situação nova naturalmente fez com que sua projeção no mundo se ampliasse.
E que, apesar disso, persistem desafios enormes a serem vencidos em todos os campos, em especial em infraestrutura, produtividade, sistema fiscal e tributário, competitividade, educação, eficiência do sistema político-partidário vigente e segurança pública.
No entanto, mesmo que esses obstáculos ainda venham a ser satisfatoriamente superados, ainda restarão questões essenciais sobre o que o Brasil quer ser no mundo e o quanto ele está disposto a pagar para chegar ao lugar que deseja.
Imagem dúbia
Mesmo regionalmente, na América do Sul, o Brasil quer ser líder ou só um grande poder benigno, condição que seu tamanho geográfico e a tradição diplomática de respeito à paz e à autodeterminação já lhe garantem?
A autoimagem de potência que não se ingere nos problemas dos vizinhos foi contrastada por observadores que classificaram o Brasil como negligente diante de situações críticas, como as de Argentina e Venezuela.
A debilidade do Mercosul e a ameaça que a Aliança do Pacífico significa para o comércio exterior brasileiro foram objeto de muitas discussões: alguns afirmavam que o Brasil já estaria marginalizado pela sua opção pelo Mercosul que o exclui dos grandes acordos transpacífico e transatlântico, enquanto outros diziam que esses tratados multinacionais, inclusive a Aliança do Pacífico, ainda não passam de miragem e que a aposta brasileira na Organização Mundial do Comércio (OMC) é a correta.
Apesar de não se ter chegado a conclusões consensuais, ficou claro que o processo de integração da América do Sul atravessa período particularmente complicado em que nem mesmo há clareza sobre o que se entende por integração, embora tenha sido realçado que, apesar de tudo, ainda há áreas onde é possível avançar, mesmo com as divisões ideológicas atuais, como a cooperação educacional-científica-cultural e o combate ao tráfico de drogas e ao crime organizado.
Ninguém duvida que o Brasil seja e vá continuar sendo um ator global relevante. Mas a dimensão de sua importância depende em parte da solução que possa dar aos obstáculos internos que constrangem seu progresso e em parte da definição a que consiga chegar sobre o seu papel no mundo.
Por exemplo, se prefere ser e ser visto como uma nação do Ocidente, no qual se encaixa do ponto de vista de cultura e valores, ou do Sul, em que se insere pela sua condição de economia emergente.
Essa contradição, de acordo com os críticos, resulta no que veem como contínua inclinação brasileira a deixar de se posicionar claramente em situações como as crises da Síria e da Líbia.
Mas a tal visão se contrapunha o argumento de que o Brasil historicamente dá preferência a ações mais eficazes por se realizarem por trás das cenas e se opõe a condenações diferenciadas politicamente por violações de direitos humanos em diferentes nações.
A disposição brasileira de se tornar mais influente e responsável na cena mundial fica evidente, de acordo com vários participantes, pela sua consistente participação em missões de paz da Organização das Nações Unidas (ONU), mais recentemente no Haiti e no Congo, e só não é mais proeminente porque em algumas situações específicas em que tentou ser mais proeminente (como no acordo com a Turquia e o Irã, de 2010, para tentar resolver o impasse do programa nuclear iraniano) foi boicotado pelas grandes potências ocidentais.
O dilema conceitual sobre o papel do Brasil no mundo foi resumido desse modo pelo documento final: “... se o Brasil é essencialmente um poder passivo que não quer se engajar na maior parte dos problemas do mundo ou se é simplesmente uma forma incomum de poder, que trabalha ativamente para promover a paz internacional e uma governança mundial melhor, só que não da maneira prescritiva e intervencionista que o Ocidente costuma usar”.
Concordou-se que o Brasil, por fortuna ou virtude (ou ambas), é um país sem inimigos reais, sem grandes problemas de segurança, sem sectarismos de ordem étnica, religiosa ou cultural, com enormes recursos naturais e humanos disponíveis, como nenhuma outra nação similar (China, Índia, Rússia, Nigéria ou Indonésia, para citar apenas alguns casos).
Essa peculiaridade afortunada lhe oferece a chance de desenvolver um “soft power” poderoso e de exercer influência real nos destinos do mundo, em especial porque o mundo agora é multipolarizado como nunca, onde mesmo as aparentes contradições brasileiras (Ocidente/Sul) podem ser classificadas mais como ativos do que passivos para o país.
No entanto, esse “soft power” precisa se expressar de maneira mais clara, como ainda não tem ocorrido, e poderá correr sérios riscos imediatos se, por exemplo, o país não for capaz de lidar bem com os protestos de rua durante a realização da Copa do Mundo, a partir do mês que vem, ou se os programas de inclusão social, admirados internacionalmente, não se revelarem sustentáveis ou se o gerenciamento de questões ambientais não se comprovar como eficiente.
Em suma, o papel do Brasil no mundo depende essencialmente de como ele será ou não capaz de resolver suas dificuldades domésticas e de como ele definirá, com clareza, o que deseja ser em relação ao seu subcontinente e em relação a todo o planeta.
O relatório final do encontro de abril, elaborado pelo diretor da Fundação Ditchley, Sir John Holmes, foi postado em 8 de maio no website da instituição e pode ser lido no endereço http://www.ditchley.co.uk/conferences/past-programme/2010-2019/2014/brazil.
Agência FAPESP