O cientista político – que é coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-Ineu) e coordenador, pela Unicamp, do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais Unesp/Unicamp/PUC-SP – falou à Agência FAPESP acerca da nova conjuntura internacional, à luz de seu livro Linhas cruzadas sobre as relações entre os Estados Unidos e a Alemanha, publicado com o apoio da FAPESP.
O livro – uma coletânea de artigos escritos por Velasco e Cruz durante período de pesquisa na Alemanha – trata das relações muito peculiares que vincularam e ainda vinculam os dois países. E se insere em um estudo abrangente sobre a política exterior dos Estados Unidos.
“Por seu discurso, pelas declarações que fez em relação a um grande conjunto de temas da agenda internacional, Trump apresenta-se como o oposto do que é o consenso dos governos europeus, e, particularmente, da posição do governo alemão”, afirmou o pesquisador. “Esse consenso, diga-se, encontra-se sob o ataque de forças emergentes na Europa, que ganharam espaço e hoje desafiam os partidos que tradicionalmente governaram os seus diferentes países. Isso ocorre na França e também na Alemanha, onde a direita nacionalista, populista e xenófoba, cresce em ritmo acelerado”, prosseguiu.
Como lembrou Velasco e Cruz, a torcida dos principais governantes europeus pela candidatura de Hilary Clinton foi notória. E, quando saíram os resultados, o discurso da chanceler alemã Angela Merkel deixou isso ainda mais claro, ao afirmar a disposição de seu governo em colaborar com os Estados Unidos em tudo aquilo que dissesse respeito à agenda tradicional, incluindo direitos humanos, paz e outros pontos que haviam sido duramente atacados por Trump.
Segundo o pesquisador, há dois temas especialmente sensíveis na nova conjuntura. “Um deles é a questão dos imigrantes e refugiados. O discurso de Trump a respeito é extremamente restritivo, especialmente em relação aos refugiados muçulmanos. Ao passo que o governo alemão, entre todos os governos da Europa, foi aquele que teve a posição mais aberta, mais generosa. E Merkel foi muito fortemente criticada por isso, fora e, particularmente, dentro da Alemanha. Então, em relação a esta questão, existe uma dissonância gritante”, disse.
“A outra questão diz respeito à Otan, a Organização do Tratado do Atlântico Norte, a aliança militar estabelecida entre os Estados Unidos e a Europa Ocidental em 1949, e que hoje congrega 28 países-membros, vários deles ex-integrantes do bloco soviético. Não se trata tanto da atitude de Trump em relação à Otan, mas da exigência que ele faz de um investimento maior dos países europeus. Este foi um tema importante de sua campanha, ao sugerir que os Estados Unidos estavam dando carona a países que tinham capacidade de se defender, mas não o faziam por se valerem do guarda-chuva militar norte-americano”, completou.
Conforme o pesquisador, a contradição a respeito do último tema torna-se ainda mais evidente quando se considera o debate interno na Europa a respeito de avançar e até onde avançar em um projeto europeu de defesa próprio, que coexista com a Otan, mas não se subordine a ela. “Recentemente, foi dado um passo importante com a elaboração do European Defense Action Plan, que aponta a perspectiva de construção de uma força militar europeia, sem a participação dos Estados Unidos. A Alemanha está à frente desse projeto”, informou.
“Por mais que os europeus digam que a constituição dessa força, com capacidade de intervir em situações de crise, não vá contra, mas a favor da Otan, a opção entre uma e outra estará colocada na hora de alocar os recursos. Para onde irá o dinheiro de países que têm um orçamento militar reduzido: para fortalecer uma Otan já bastante desgastada ou para constituir essa força própria, que dá à Europa uma capacidade de ação independente muito maior? A crítica norte-americana em relação à falta de empenho europeu na sustentação da Otan é antiga. Mas assumiu tons acalorados na campanha de Trump”, argumentou o pesquisador.
Outro tópico conflituoso, lembrou Velasco e Cruz, diz respeito ao TTIP (Transatlantic Trade and Investment Partnership – Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento), que está em discussão desde 2013 e parece ter sido fatalmente atingido com a eleição de Trump.
O resultado disso tudo, na avaliação do pesquisador, é que o protagonismo da Alemanha deverá aumentar. “A nova conjuntura parece acentuar as tendências que apontei nos dois últimos capítulos do livro. Não por uma ação gerada na própria Alemanha, mas como decorrência das mudanças que ocorrem no sistema global, a posição alemã tende a se reforçar.”
“Ainda que a Europa, como um conjunto, esteja sendo fissurada por essas mesmas mudanças, é previsível uma maior presença e independência europeia na cena internacional. A saída do Reino Unido aparentemente enfraqueceu a União Europeia. Mas, de fato, impôs a necessidade e tornou possível uma coesão maior dos que permaneceram, porque, fortemente alinhada com os Estados Unidos, a Inglaterra sempre atuou como um poder de veto no cenário europeu”, sublinhou o pesquisador.
A herança do pós-guerra
Sem pretender ter feito um estudo exaustivo – “até porque este não seria o objetivo de uma coletânea de artigos”, ele sublinha –, Velasco e Cruz, assim mesmo, recuou ao século XVIII para buscar as raízes das relações peculiares entre os Estados Unidos e a Alemanha. Mas a ênfase maior foi dada à reconstrução da Alemanha depois da Segunda Guerra Mundial, à atuação da República Federal no período da Guerra Fria e à reconfiguração da presença alemã após a debacle do bloco soviético e a reunificação do país.
“A primeira consideração a fazer é que, depois da Segunda Guerra Mundial, a Alemanha enquanto Estado estava praticamente dissolvida, com o país dividido e ocupado. A reconstrução da Alemanha e a própria elaboração da Constituição da República Federal Alemã foram feitas sob a supervisão e orientação dos Estados Unidos. No plano estratégico norte-americano, o reerguimento da indústria alemã foi crucial na montagem de um sistema destinado a conter o bloco soviético”, explicou.
Outro dado foi que, para se recompor como país, a Alemanha precisou exorcizar os fantasmas de um passado tenebroso – herança do regime de terror nazista e do protagonismo em duas guerras mundiais. “A Alemanha se reconstituiu rejeitando esse passado e procurando firmar em sua inserção internacional uma identidade diametralmente oposta à atitude militarista, racista, xenófoba, antissemita de seu passado recente”, lembrou o pesquisador.
Esses dois elementos (os Estados Unidos como fiadores da nova Alemanha e a nova Alemanha como um poder civil e democrático) fizeram com que os alemães do Oeste transformassem aquilo que seria um elemento limitador (o fato de seu país ter sido derrotado, dividido e ocupado) em uma mola propulsora. E foi com esse espírito que a Alemanha Ocidental se aproximou da França no projeto que viria resultar na União Europeia, desde o início assentada sobre o eixo franco-alemão. “A despeito de uma maior independência em relação aos Estados Unidos – mais explícita no caso da França, mais velada no caso da Alemanha –, o projeto europeu contou com o apoio norte-americano, na medida em que poderia se constituir em obstáculo à influência soviética”, ponderou Velasco e Cruz.
Quando terminou a Guerra Fria, com a dissolução do bloco soviético e a reunificação da Alemanha, houve um esforço prolongado da diplomacia alemã de não de se distanciar dos Estados Unidos, mas de afirmar, com cores mais fortes, um perfil próprio, como convinha a um país que, por sua força econômica, se tornara o líder de fato do projeto europeu.
“Durante toda a década de 1990 e início da de 2000, a opinião amplamente predominante era que o mundo havia transitado de um sistema bipolar para um sistema unipolar, em que as tensões e os conflitos continuariam existindo, mas no âmbito de um ordenamento estabelecido e assegurado pelos Estados Unidos. Tal hegemonia foi, em certa medida, tensionada pelo projeto de integração europeia, com a união monetária e o projeto de avançar para uma política externa e um sistema de defesa comuns”, pontuou Velasco e Cruz.
E concluiu: “Esse cenário foi muito fortemente atingido pelo desastre militar dos Estados Unidos no Iraque e no Afeganistão e, alguns anos depois, em 2008, pela crise financeira. A equação tornou-se, então, bem mais complexa, com a ascensão da China e a reestruturação da Rússia, um Estado economicamente frágil, mas dotado de uma capacidade militar impressionante. A eleição de Trump introduz agora mais uma variável. Em escala global, o desfecho é imprevisível, mas, no âmbito mais restrito da política externa alemã, não é descabido apostar em um importante aumento do protagonismo”.
Linhas cruzadas sobre as relações entre os Estados Unidos e a Alemanha
Autor: Sebastião Carlos Velasco e Cruz
Editora: Editora Unesp
Ano: 2016
Páginas: 116
Preço: R$ 32,00
Mais informações: http://editoraunesp.com.br/catalogo/9788539306374,linhas-cruzadas-sobre-as-relacoes-entre-os-estados-unidos-e-a-alemanha
Agência FAPESP