Sem negar a validade e a eficácia desse eixo interpretativo, uma nova pesquisa procurou transitar nele pelo sentido inverso, explorando a ideia de uma literatura brasileira sendo devorada e digerida por outros, de uma literatura brasileira ocupando a outra ponta da relação. Trata-se de “A internacionalização da cultural brasileira e o Sul Global”, de Alfredo Cesar Barbosa de Melo, desenvolvida com apoio da FAPESP .
Melo é professor do Departamento de Teoria Literária da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Para levar adiante seu projeto, investigou o impacto provocado nos escritores africanos de língua portuguesa pela literatura brasileira nas décadas de 1940, 1950 e 1960.
“A antropofagia cultural e o paradigma da crítica literária do século 20 tentaram responder a uma espécie de complexo de inferioridade brasileiro. No século 19, havia a ideia de que éramos incapazes de sermos originais devido ao nosso passado colonial. Pelo fato de termos sido colonizados pela Europa, estávamos condenados a ter uma cultura sempre derivativa. Ao afirmar que nossa derivação era criativa, que éramos capazes de transmutar aquilo que recebíamos, a antropofagia cultural e o paradigma da crítica literária do século 20 atribuíram uma conotação positiva ao que antes nos causava mal-estar”, disse o pesquisador à Agência FAPESP.
“O que procurei fazer foi investigar a nova situação que se configurou no momento em que nossos produtos culturais passaram a ser exportados. Essa nova realidade, que pode ser sintetizada na expressão ‘antropófagos devorados’, foi um dos pressupostos de minha pesquisa. O outro pressuposto foi escapar das dicotomias metrópole-colônia, centro-periferia, desenvolvido-subdesenvolvido, que sempre orientaram nossa reflexão sobre a inserção do Brasil no mundo. Procurei considerar um outro eixo relacional, que poderíamos chamar de Sul-Sul, comparando a produção brasileira com as produções africanas”, acrescentou.
Melo relatou que o tema lhe ocorreu a partir da própria leitura de depoimentos e entrevistas de escritores africanos de língua portuguesa. “Percebi neles uma enorme admiração pela cultura brasileira. No momento em que as antigas colônias portuguesas estavam gestando seu próprio nacionalismo político e cultural, escritores brasileiros, como Guimarães Rosa, Jorge Amado, José Lins do Rego e até mesmo Gilberto Freire, constituíram para os intelectuais angolanos, moçambicanos e cabo-verdianos um modelo inspirador, de autonomia cultural”, afirmou.
Para exemplificar sua afirmação, o pesquisador lembrou nomes como os de Ruy Duarte de Carvalho e José Luandino Vieira em Angola, José Craveirinha e Mia Couto em Moçambique, Gabriel Mariano e Baltasar Lopes em Cabo Verde. “Todos estes escritores, em algum momento, referiram-se à importância que teve para eles a literatura brasileira”, sublinhou.
Foi na cadeia que José Luandino Vieira tomou conhecimento da obra de Guimarães Rosa. O escritor angolano foi preso pela Pide, a polícia política da ditadura portuguesa, em 1959. E, novamente, em 1961, permanecendo encarcerado por 11 anos, até obter a liberdade condicional em 1972. Em entrevista famosa, recordou como, durante esse período, chegou às suas mãos o livro Sagarana, e quão importante foi poder lê-lo naquele momento.
“Na literatura brasileira, esses intelectuais africanos encontraram o referente literário de uma realidade que não lhes era estranha, uma realidade que lhes inspirava um sentimento de familiaridade, de contiguidade sociocultural”, resumiu Melo.
Baltasar Lopes, por exemplo, afirmou que leu Evocação do Recife, de Manuel Bandeira, um poema referencial do modernismo brasileiro, projetando a realidade descrita no poema no contexto cabo-verdiano. Vila da Ribeira Brava, na ilha de São Nicolau, em Cabo Verde, forneceu a Lopes o cenário onde idealizou Recife. Um velho conhecido seu, Pedro António, fez as vezes do personagem Totônio Rodrigues, mencionado por Bandeira. E a moça tomando banho nua, cuja visão provocou no poeta brasileiro seu “primeiro alumbramento”, foi imaginada pelo cabo-verdiano na Ribeira Dom João.
“Foi tamanho o sentimento de familiaridade despertado nesses intelectuais africanos pelos cenários e personagens da literatura brasileira que o Brasil pareceu ser, para eles, uma parte de sua própria realidade. Mia Couto, por exemplo, que já é integrante de uma geração posterior, disse que a primeira leitura da obra de Guimarães Rosa o fez lembrar-se das narrativas que escutava dos contadores de história em Moçambique quando era criança”, comentou o pesquisador.
Esse sentimento de familiaridade despertado pelo mundo rosiano também foi saborosamente recordado por Ruy Duarte de Carvalho. Referindo-se especificamente a Grande Sertão: Veredas, ele disse: “Nas paisagens que Guimarães Rosa me descrevia, eu estava a reconhecer aquelas que tinha por familiares. Já porque de natureza a mesma que muitas paisagens de Angola – e em algumas das paisagens de Angola eu reconhecia aquelas, enquanto o lia – já porque a gente que ele tratava, gente de matos e de grotas, de roças e capinzais, era também em Angola aquela com quem durante muitos anos andei a lidar pela via do ofício de viver”.
“Ao estudar esse tipo de emulação, ocorreu-me imediatamente a comparação com o próprio processo de formação da literatura brasileira, tal como foi descrito por Antonio Candido. Aqui também houve a inserção de temas e modos da literatura europeia no cenário do Brasil. Foi o caso, por exemplo, de um Cláudio Manoel da Costa, de um Tomás Antônio Gonzaga, ao projetarem seu ideal arcádico na paisagem natural e humana de Minas Gerais. Mas a comparação entre esses dois conjuntos, “o brasileiro que se inspira na Europa” e “o africano que se inspira no Brasil”, me levou a perceber que, apesar de estruturalmente parecidos, existe entre eles uma diferença fundamental”, ponderou Melo.
“Porque existe, na cultura brasileira, a ideia arraigada de que o Brasil é um país que está sempre em construção, sempre em desenvolvimento, nunca chegando a ser aquilo que gostaria de ser ou que deveria ser. O grande conflito entre o Brasil e a Europa é que ela parece sempre colocar diante de nossos olhos um ideal inalcançável. Da parte dos africanos, porém, a relação é outra. Em nenhum momento, o Brasil se apresenta para eles como um modelo a ser alcançado. Em nenhum momento, eles pensam que gostariam de ser o Brasil. A relação que estabelecem é que já são o Brasil, que suas sociedades são tais e quais a sociedade brasileira, que existe entre Brasil e África uma espécie de contiguidade existencial”, explicou.
Assim, por exemplo, não foi como ideais inalcançáveis, mas como tipos imediatamente reconhecíveis e apropriáveis, que os compositores angolanos Ruy Mingas e Mario Antonio inseriram nos versos famosos de sua canção “Poema da farra” os personagens de Jubiabá, de Jorge Amado: “Quando li Jubiabá / me acreditei Antonio Balduíno / Meu primo, que nunca o leu / Ficou Zeca Camarão”.
“Há algo a aprender com isso, algo que não deve ser negligenciado, algo que pode nos ajudar a rever nossa autoimagem e nossa inserção no mundo”, argumentou o pesquisador.
A grande ironia é que essa aproximação entre Brasil e África foi promovida, nos anos 1940, pelas ditaduras brasileira e portuguesa. Foi o Acordo Cultural Luso-Brasileiro, assinado em 1941 pelos representantes do “Estado Novo” de Vargas e do “Estado Novo” de Salazar, que abriu as portas para a entrada do livro brasileiro em Portugal. E, nos anos subsequentes, esses livros iriam cair nas mãos de jovens africanos que, mais tarde, assumiriam posição de vanguarda política e cultural em seus respectivos países. Na década de 1940, esses jovens estavam em Lisboa, na Casa dos Estudantes do Império, patrocinada pelo governo português.
A expectativa da ditadura salazarista era que, ao voltarem à África, esses estudantes viessem a constituir uma espécie de elite colonial, aculturada e identificada com os valores da metrópole. Porém foram eles que, mais tarde, assumiram a liderança da luta anticolonial, da luta pela independência: Agostinho Neto e Mario Pinto de Andrade em Angola, Marcelino dos Santos em Moçambique, Amílcar Cabral e Gabriel Mariano em Cabo Verde, entre outros.
“Para esses jovens africanos, escolarizados segundo os cânones do sistema colonial de educação, que tinham que ler os clássicos portugueses, Camões, Herculano, Garrett, Camilo, Eça, autores que eles associavam ao próprio colonialismo, a descoberta de obras como Menino de engenho (1932), de José Lins do Rego, Capitães da areia (1937), de Jorge Amado, ou Sagarana (1946), de Guimarães Rosa, deve ter constituído uma extraordinária experiência libertadora. A experiência de uma realidade que tanto se assemelhava à sua. A experiência de um idioma português totalmente transfigurado. Até mesmo um autor considerado conservador como Gilberto Freyre exerceu sobre eles um forte impacto, com sua leitura orientalizante, mouro-judaica, da história da Península Ibérica, tão diferente da genealogia convencional”, enfatizou Melo.
Não é necessário supor que a linguagem caipira, arcaizante e reinventada de uma obra complexa como Grande Sertão: Veredas (1956) tenha sido inteiramente compreendida pelos intelectuais africanos. Também os brasileiros não a compreendem inteiramente. Mas isso não impede que romance seja lido sem a necessidade de se fazer uma pesquisa a cada tropeção. “José Luandino Vieira disse que leu, deixou de entender muita coisa, porém percebeu que, ali, estava um caminho a ser seguido pela literatura angolana, um caminho para marcar a diferença. Porque a grande questão que se coloca para um país em luta pela independência é marcar a diferença em relação à antiga metrópole. E foi isso que Guimarães Rosa ofereceu aos intelectuais africanos: a possibilidade de, escrevendo em português, escrever em uma língua completamente diferente daquela aprendida na escola”, pontuou o pesquisador.
“As influências da literatura brasileira sobre as africanas de língua portuguesa são bem conhecidas e documentadas. A proposta da pesquisa foi tentar tirar as consequências dessa influência para o estudo do comparatismo feito no Brasil”, concluiu.
Agência FAPESP