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A busca da coerência entre o que se diz e o que se faz foi um dos grandes vetores do pensamento e da ação do filósofo francês Michel Foucault (1926 – 1984) em seus últimos anos de vida. A compreensão dessa diretriz, que orientou tanto a sua produção teórica quanto a sua prática político-social, é o fio condutor do livro A coragem da verdade e a ética do intelectual em Michel Foucault, de Priscila Piazentini Vieira, publicado com o apoio da FAPESP.
“Minha intenção principal foi entender a mudança ocorrida na concepção de verdade de Foucault, da década de 1970 para a década de 1980, e como isso fez com que ele repensasse a sua atividade intelectual”, disse Vieira à Agência FAPESP. Ela foi bolsista da FAPESP em iniciação científica, mestrado e doutorado. E, atualmente, leciona História Contemporânea na Universidade Federal do Paraná (UFP), tendo concluído seu pós-doutorado em História Cultural na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), também com bolsa da FAPESP. O livro em pauta é uma revisão de sua tese de doutorado, orientada pela historiadora Margareth Rago.

“Quando iniciei o doutorado, a publicação dos últimos cursos de Foucault ainda não havia se completado, mesmo na França. Por isso, precisei escutar as gravações em áudio dessas aulas, no Collège de France, em Paris. E percebi claramente como a noção de ‘coragem da verdade’, desenvolvida no final de sua vida, era diferente da noção de ‘vontade de verdade’, do período anterior. Para operar essa transformação, Foucault deslocou seu foco da Modernidade para a Antiguidade. Voltou aos gregos. E reconheceu neles uma relação diferente com a verdade, que era a expectativa de coerência entre o pensamento, a palavra e a ação. O conhecimento pressupunha a transformação da própria vida”, afirmou a pesquisadora.

O grande paradigma dessa coerência foi evidentemente Sócrates, condenado à morte e executado em Atenas, no ano 399 a.C., por se recusar a abrir mão de suas ideias e da liberdade de comunicá-las aos outros. Mas, além de Sócrates, Foucault reconheceu também a importância dos filósofos chamados “cínicos” – como Antístenes, antigo aluno de Sócrates, e Diógenes, discípulo de Antístenes, entre outros, com sua rejeição das convenções sociais (dinheiro, fama e poder) e sua prática da virtude (areté), configurada nas noções de autossuficiência (autarkeia) e desapego frente aos altos e baixos da vida (apatheia).

“Na apropriação feita pelo cristianismo do pensamento grego, essa noção de ‘coragem da verdade’, que estava associada à ideia de autonomia, se perdeu. E foi substituída pela noção de ‘obediência’. Tal transição, da autonomia à obediência, vinculou-se ao processo de institucionalização do cristianismo”, informou Vieira.

Convém lembrar que, depois de ser duramente reprimido, sob o governo de vários imperadores romanos, como Décio (201 – 251), por exemplo, o cristianismo foi adotado por Constantino (272 – 337) e transformado em religião oficial e finalmente em religião exclusiva do Império por Teodósio (347 – 395).

“Foucault retomou Sócrates e também a tradição cínica, pouco estudada e até mesmo estigmatizada na história da filosofia. De volta aos gregos, e à coragem da verdade, ele retomou a noção de filosofia não apenas como conhecimento ou pretensão de conhecimento, mas também como modo de vida”, sublinhou a pesquisadora. Esta foi, como ela reconheceu, uma das importantes tentativas contemporâneas de romper com a aridez acadêmica de uma filosofia que havia se transformado em um sofisticado mas inócuo exercício de erudição – de comentário do texto e de comentário do comentário.

Em seu livro, Vieira citou uma frase muito representativa desse movimento do filósofo, dita no curso “Le courage de la verité. Le gouvernement de soi et des autres II [ A coragem da verdade. O governo de si e dos outros II]”, ministrado por Foucault no Collège de France, nos anos 1983 e 1984: “A coragem da verdade do cinismo propõe enfrentar a cólera das pessoas dando-lhes a imagem do que elas admitem e valorizam no pensamento e rejeitam e desprezam em suas próprias vidas. É o escândalo cínico, que não arrisca a vida simplesmente dizendo a verdade, mas pela maneira de viver. A questão, portanto, que o cinismo colocou insistentemente à filosofia na Antiguidade, no cristianismo e no mundo moderno, é a da vida filosófica, afirmando: ‘expomos nossa vida, não mais pelo discurso, mas pela própria vida’”.

Por isso, ao enfocar o tema, a pesquisadora também procurou aproximar os escritos e os ditos de Foucault de sua prática e militância político-social. “Na década de 1970, quando começou a estudar o poder, ele já havia se desgarrado da figura do intelectual neutro e professoral. Militando contra o sistema prisional em seu Grupo de Informação sobre as Prisões, o GIP, e fazendo entrevistas com prisioneiros e seus familiares, colocou-se ao lado, e não acima, daqueles cujas trajetórias estudava. Depois, na década de 1980, quando aprofundou sua reflexão sobre a ética, e também em função das frequentes viagens aos Estados Unidos para dar cursos na Universidade de Berkeley, aproximou-se também de outras forças sociais, como o movimento feminista, o movimento gay e a contracultura. Sem fazer parte, mas aproximando-se, ele viu nesses movimentos, nessas formas de contestação, um modo diferente de se relacionar com a verdade e a vida, e a proposta de promover novas formas de subjetividade, recusando o tipo de individualidade produzida pelo Estado moderno”, relatou.

O próprio Foucault disse que a coragem da verdade dos cínicos havia perpassado a tradição de militância do Ocidente: primeiro, com os cristãos, antes da institucionalização do cristianismo; depois, com os anarquistas e outros militantes éticos do século XIX, que queriam transformar não apenas as instituições políticas, mas também a maneira de viver. “Acredito que, também para ele, Foucault, a coerência entre o que escrevia ou dizia nos cursos e nas entrevistas e sua militância era uma diretriz muito poderosa no sentido de fazer da filosofia um modo de vida. A ética do intelectual pressupunha para ele uma transformação não apenas das ideias, mas da própria existência”, sintetizou Vieira.

Essa diretriz levou o filósofo a assumir atitudes às vezes mal compreendidas. Foi o caso de seu apoio à revolução iraniana, antes que esta fosse rigidamente controlada e enquadrada pela liderança autoritária. Isso se deu em 1978, quando ele foi contratado como correspondente especial no Irã pelo jornal italiano Corriere della Sera e pela revista francesa Le Nouvel Observateur. “Visitando o país no auge dos protestos de rua contra o regime ditatorial do xá Reza Pahlevi, e encontrando-se com vários líderes do processo revolucionário, entre eles, o aiatolá Ruhollah Khomeini, Foucault ficou entusiasmado com a coragem física dos manifestantes, em seus embates corporais contra as forças repressivas. Alguns criticaram mais tarde o filósofo, esquecendo-se do contexto em que ele expressou seu apoio”, ponderou a pesquisadora.

Logo no começo dos anos 1980, outro importante assunto entrou em seu campo de reflexão e ação. Antecipando um tema que ainda não estava em evidência, Foucault começou a falar da imigração, militando pela necessidade de um alargamento do conceito de direitos humanos [tal como os dos boat people], de modo que a Europa pudesse acolher dignamente os imigrantes e boat people, constituído por refugiados que se lançavam ao mar em embarcações precárias para escapar de situações insustentáveis em seus países de origem. Esse dinamismo da teoria e da prática do filósofo, essa capacidade de estar sempre à margem de seu tempo, exige que o estudo do pensamento foucaultiano não se restrinja à análise dos livros por ele publicados. “É muito difícil explicar certos descolamentos apenas por meio dos livros, cujas publicações foram separadas por longos intervalos de tempo, como no caso de sua coleção sobre a História da Sexualidade, e que apresentam formulações já finalizadas e muito sintéticas. Para ler Foucault, considerei três tipos de material: os livros, os cursos e as entrevistas”, disse Vieira.

“Por serem mais dinâmicos, os cursos e as entrevistas ajudam a entender as mudanças que foram ocorrendo em seu pensamento, o caminho que o levou de uma ideia a outra. Além disso, nos cursos, ele pôde expor seu pensamento de forma muito mais clara e detalhada do que nos livros. E, nas entrevistas, vinculou claramente suas reflexões sobre o pensamento antigo com comentários sobre o presente. Aquilo que nós teríamos receio de fazer ele mesmo o fez”, justificou.

Em 1994, a publicação em quatro volumes das entrevistas, de textos escritos para revistas e jornais, de manifestos políticos e de conferências dadas em diversos países, tais como o Japão e o Brasil, ofereceu um novo repertório para os estudos foucaultianos. Mas, antes disso, as entrevistas já constituíam uma mina de ideias. E foi uma entrevista famosa, “Verdade e Poder”, incorporada ao livro Microfísica do Poder, de 1979, o ponto de partida da pesquisa de Vieira. “Nessa entrevista, Foucault afirmou que a grande questão para o intelectual era pensar em uma nova política da verdade. Então, quando mais tarde ele apresentou a noção de ‘coragem da verdade’, eu reconheci nela essa nova política. Assim se configurou para mim o tema”, concluiu a pesquisadora.

A coragem da verdade e a ética do intelectual em Michel Foucault
Autora: Priscila Piazentini Vieira
Editora: Intermeios
Páginas: 200
Preço: R$ 35,00
Mais informações: www.intermeioscultural.com.br/#!a-coragem-da-verdade-e-a-tica-do-intele/c2518.

Agência FAPESP