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A inauguração de Brasília, em 21 de abril de 1960, associou à imagem do Brasil a marca da modernidade. Foi a culminância de um processo de reinvenção da paisagem urbana que ganhou expressão durante as décadas de 1940 e 1950. Porém, no Estado de São Paulo, os edifícios públicos continuaram até 1959 em descompasso com a nova tendência. O Departamento de Obras Públicas (DOP), subordinado ao governo estadual, produzia, há muito tempo, projetos ecléticos.
Por sua vez, a poderosa Secretaria de Agricultura, que se encarregava de suas próprias edificações, além da linguagem eclética, seguia o cânone neocolonial.

Com a eleição do governador Carlos Alberto de Carvalho Pinto (1910 – 1987), que governou o Estado de São Paulo de 31 de janeiro de 1959 até 31 de janeiro de 1963, o cenário mudou substancialmente. Estima-se que mais de mil novos edifícios públicos, pautados pela linguagem moderna, tenham sido construídos – além das reformas e ampliações empreendidas nos equipamentos antigos. “Projetos e obras paradigmáticas da arquitetura moderna paulista foram iniciados no período, como os edifícios da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e dos Departamentos de História e Geografia na Universidade de São Paulo”, disse, à Agência FAPESP, o arquiteto Miguel Antonio Buzzar, professor do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (IAUUSP) em São Carlos.

Buzzar foi o pesquisador responsável pelo projeto Difusão da arquitetura moderna no Brasil: o patrimônio arquitetônico criado pelo Plano de Ação do Governo Carvalho Pinto (1959-1963), apoiado pela FAPESP , que contou com mais de 20 pesquisadores, incluindo Monica Camargo Junqueira e Maria Tereza Regina Leme de Barros Cordido. “Das mais de mil obras estimadas, conseguimos levantar 602 no curso do projeto. E inventariamos 511 com maior precisão”, informou o pesquisador.

Esse boom de edificações, que, no seu interior, deu corpo à chamada “Escola Paulista” de arquitetura, projetando os nomes de João Batista Vilanova Artigas (1915 – 1985), Paulo Archias Mendes da Rocha (nascido em 1928), Carlos Millan (1927 – 1964) e muitos outros, foi um produto do PAGE (Plano de Ação do Governo do Estado), definido, aprovado e posto em prática durante a gestão Carvalho Pinto.

“Por meio do PAGE, foram executadas obras de infraestrutura, águas, esgotos, energia elétrica, ferrovias, rodovias, pontes e edificações em todo o Estado de São Paulo, conformando uma rede de serviços públicos. Identificamos obras em 265 municípios paulistas”, afirmou Buzzar.

Hidrelétricas, Usinas e a Cidade Universitária

Além de edifícios de faculdades, escolas, fóruns, postos de saúde, casas da agricultura etc., o PAGE propiciou ainda o início da construção da usina hidrelétrica de Urubupungá e obras nas usinas de Limoeiro, Euclides da Cunha, Barra Bonita, Jurumirim, Bariri, Graminha e Xavantes.

Mas o alcance do plano foi bem maior e mais duradouro do que aquilo que pode ser medido em metros cúbicos de concreto e tijolos. A implantação da Cidade Universitária Armando Sales de Oliveira, essencial para transformar a USP em uma verdadeira universidade, deslanchou com o PAGE. E a própria FAPESP, que estava no papel desde 1947, só se tornou realidade por causa do plano.

“Para impulsionar a implantação da Cidade Universitária, o PAGE criou o Fundo para Construção da Cidade Universitária Armando de Salles Oliveira (FCCUASO), depois Fundusp, e, atualmente, Superintendência de Espaço Físico da USP (SEF). Na verdade, o Plano de Ação estabeleceu vários fundos com perfis diversos, dentre eles, o Fundo Estadual de Construções Escolares (FECE), transformado depois na Conesp e, hoje, no Fundo de Desenvolvimento Escolar (FDE)”, relatou Buzzar.

O PAGE foi a resposta do governo Carvalho Pinto a uma conjuntura de aguda crise econômica. Em vez de cortar gastos públicos, como preconizavam os economistas mais conservadores, o plano seguiu a fórmula utilizada pelo britânico John Maynard Keynes (1883 – 1946) para enfrentar a “Grande Depressão” nos Estados Unidos: produzir obras para gerar empregos, gerar empregos para estimular o consumo, estimular o consumo para reaquecer a economia. “Por meio do Ipesp [Instituto de Previdência do Estado de São Paulo], o governo estadual tinha dinheiro em caixa. E pôde realizar todas as obras do PAGE sem se endividar. Mais de 160 arquitetos foram contratados e projetaram edificações para o Plano de Ação”, disse o pesquisador.

Como destacou Buzzar, a concepção keynesiana fica bem clara neste trecho do programa do PAGE: “o aumento de bem-estar da comunidade deriva de inversões em setores não sujeitos ao mecanismo automático do mercado, tais como Educação, Cultura e Pesquisa, Saúde e Assistência Social, Justiça e Segurança e Sistemas de Esgotos”.

A difusão da arquitetura moderna no Estado de São Paulo no início da década de 1960 (video YouTube)

Economia e Humanismo

Mas, além das ideias do economista britânico, um outro e ainda mais influente vetor participou da composição do ideário do PAGE: a renovação do pensamento católico, protagonizada pelo frade dominicano francês Louis-Joseph Lebret (1897 – 1966). “O PAGE foi criado a partir das diretrizes de ‘Economia e Humanismo’ de Lebret, que exerceram uma influência muito grande na formação dos jovens militantes católicos brasileiros e no Partido Democrata Cristão”, sublinhou Buzzar.

A partir de uma prolongada atuação junto a comunidades de pescadores da Bretanha, França, Lebret lançou, na década de 1940, o movimento “Economia e Humanismo”, como uma espécie de terceira opção diante da dicotomia “capitalismo versus socialismo”. Visitou posteriormente cerca de 60 países, especialmente o Brasil. Aqui encontrou diversos apoiadores, tendo orientado pesquisas sobre as condições de vida nos bairros pobres de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Recife, formando profissionais para trabalhar em associação com as prefeituras locais. Mais tarde, teve atuação decisiva no Concílio Vaticano II e participou da redação da constituição Gaudium et Spes (“Alegria e Esperança”) e da encíclica Populorum Progressio (“Do Progresso dos Povos”), proclamadas pelo papa Paulo VI (1897 –1978).

Embora tivesse perfil conservador e fosse descendente de uma família bastante tradicional (seus antepassados eram importantes cafeicultores do interior paulista e seu tio-avô, Francisco de Paula Rodrigues Alves, foi presidente da República no período 1902 – 1906), Carvalho Pinto, que pertencia ao Partido Democrata Cristão, sensibilizou-se pelas ideias do dominicano francês. E entregou a coordenação da elaboração e do gerenciamento do PAGE a seu chefe de gabinete, Plínio de Arruda Sampaio (1930 – 2014), também originário do meio católico. Sampaio, que teria nas décadas seguintes destacada atuação política, vindo a ser candidato à Presidência da República pelo PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) nas eleições de 2010, era, então, um entusiasta da “Economia e Humanismo” de Lebret.

“Foi ele que promoveu a aproximação do governo estadual com os arquitetos modernos”, informou Buzzar. “A economia humanista de Lebret preconizava, entre outras coisas, a utilização de equipamentos públicos, como escolas, hospitais, postos de saúde etc., para a promoção de reformas sociais. E Sampaio viu nas qualidades formais da arquitetura moderna a representação simbólica dessa orientação. Traços muito característicos das soluções arquitetônicas do período são os grandes vãos livres e os edifícios não murados, abertos para o entorno e possibilitando livre acesso aos cidadãos. As obras, entendidas como equipamentos públicos, de uso público efetivo, deviam ter uma relação de continuidade, e não de restrição, com o espaço público exterior. As praças adentravam os edifícios, como a vida ativa deveria fazê-lo. Esta concepção, se não orientou o conjunto dos edifícios produzidos sob o Plano de Ação, definiu pelo menos o paradigma arquitetônico daqueles que são considerados os mais representativos”, detalhou o pesquisador.

Por intermédio de Plínio de Arruda Sampaio, houve um acordo com o Instituto dos Arquitetos do Brasil, que, à época, tinha como um dos seus líderes João Batista Vilanova Artigas. Os equipamentos públicos foram projetados por escritórios de arquitetura e construídos, na maior parte dos casos, por pequenas empresas, e não por grandes empreiteiras, que, na verdade, só adquiriram o poder econômico que têm no país durante a ditadura civil-militar. Para que não houvesse favorecimentos nas contratações, os valores foram discutidos, votados e firmados em ata, em assembleia realizada no IAB. “Ainda que não formulada claramente, houve uma ‘aliança’ do governo com os arquitetos vinculados ao IAB, aliança que permitiu que uma parcela significativa dos arquitetos desse vazão aos seus ideais acerca da função social da arquitetura, projetando definitivamente a chamada Escola Paulista”, comentou Buzzar.

Todo um contingente de arquitetos modernos, composto pelos já citados Artigas, Mendes da Rocha e Millan, mas também por Abrahão Sanovicz, David Libeskind, Eduardo Corona, Eduardo Kneese de Mello, Icaro Castro Mello, Joaquim Guedes, José Maria Gandolfo, Maurício Nogueira Lima, Pedro Paulo de Melo Saraiva, Rino Levi, Salvador Candia, Ubirajara Gilioli, Victor Reif, dentre outros, projetou equipamentos para o PAGE.

“Uma das metas do PAGE era implantar definitivamente a Cidade Universitária Armando Salles de Oliveira, que, até então, tinha poucos edifícios construídos. Dentre as novas obras iniciadas na gestão Carvalho Pinto, destacam-se o edifício da Faculdade de Arquitetura de Urbanismo (FAU), projetado por Artigas; o edifício dos Departamentos de História e Geografia, projetado por Corona; e o Conjunto Residencial da Universidade de São Paulo (CRUSP), projetado por Kneese de Mello. Mas estes são apenas alguns dos grandes ícones do período. Do montante de obras construídas, nosso estudo permitiu selecionar, por todo o estado, 163 obras com grande importância arquitetônica, representativas da pluralidade das linguagens modernas do período, importantes para preservação”, concluiu o pesquisador.

Agência FAPESP