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fiocruz-capa_diabetesUm olhar diferente sobre o diabetes, a partir da sociologia e da antropologia: esta é a proposta do livro As representações sociais e a experiência com o diabetes: um enfoque socioantropológico, lançamento da Editora Fiocruz (Coleção Antropologia e Saúde). Assinada por Reni Aparecida Barsaglini, professora e pesquisadora do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), a obra destaca a importância de ouvir com atenção as pessoas que vivenciam uma condição crônica como o diabetes: essa escuta pode subsidiar intervenções de saúde que sejam mais sensíveis aos aspectos culturais e favoreçam a interação entre profissionais e adoecidos.
A pesquisa que originou o livro utilizou metodologia qualitativa, incluindo consulta à literatura biomédica básica e a documentos de entidades ligadas ao diabetes, entrevistas com pacientes, familiares e profissionais de saúde, e observações em campo (no bairro, na residência e na unidade de saúde).
Reni entrevistou 19 profissionais: nove auxiliares de enfermagem, cinco médicos, quatro enfermeiras e uma nutricionista. Com uma visão predominantemente médico-científica, eles definiram o diabetes em termos de disfunções patológicas que acarretam danos orgânicos. Porém, ao falarem sobre o paciente diabético, esses profissionais apresentaram um discurso carregado de padrões socioculturais e morais. Embora reconheçam as dificuldades, “eles esperam docilidade, disciplina, adesão ao tratamento e responsabilidade no controle do diabetes, podendo rotular os pacientes de ‘bons’, ‘maus’, ‘rebeldes’, ‘teimosos’”, conta a autora. “As condições crônicas pressupõem cuidado permanente ou prolongado, e a preocupação dos profissionais com a adesão ao tratamento é central, mas, muitas vezes, problematizada unilateralmente”, acrescenta. Segundo a pesquisadora, é preciso ficar atento para não individualizar demasiadamente a responsabilidade pelo controle do diabetes, o que se mostra pouco adequado para o enfrentamento de condições crônicas. “O diabetes e outras condições crônicas requerem cooperação e ajuda mútua entre profissional de saúde e adoecido”, explica Reni.

Assim como os profissionais de saúde, os adoecidos também reconhecem a relevância da tríade medicamento-dieta-exercício físico para o controle do diabetes, mas os significados desses termos podem, em alguns aspectos, se assemelhar ou diferir para um e outro grupo. “Se para os profissionais predomina uma preocupação técnica com o controle do nível de glicose dentro de padrões de referência e o seguimento das prescrições médicas e dietéticas, os adoecidos valorizam mais questões práticas e simbólicas referidas aos contextos culturais, sociais e familiares, que os incitam a promover ajustes nos padrões das prescrições que viabilizem o sentir-se física e moralmente bem em relação ao adoecimento”, explica Reni.

Sobre o papel da família no tratamento, não há regra fixa: ele varia conforme as características de estrutura e funcionamento familiar; extensão da família; lugar, sexo e idade do diabético e do cuidador; conhecimentos, experiências e práticas prévios com o diabetes ou outra condição crônica. Assim, a ocorrência de uma condição crônica pode mudar a conformação e a dinâmica da família para acomodar a nova situação, mas, reciprocamente, as características da família influenciam o impacto da doença na vida do adoecido. “A família pode ser vista como importante e estratégica fonte de apoio em situações de doenças crônicas, mas deve-se atentar para outras fontes formais de apoio, entre elas os serviços de saúde”, lembra Reni. Segundo a autora, a família não ‘pode parar’ devido ao problema de saúde e, tendo que administrar outras exigências cotidianas, vê-se sobrecarregada e responsabilizada pelo cuidado ‘adequado’ – ‘dever’ que costuma recair sobre a mulher, sendo ela ou não a adoecida. “Em muitos casos, não só o sujeito adoecido, mas a família requer apoio. Os serviços de saúde devem estar atentos e não transferir para as famílias certas responsabilidades que estas não têm condições de gerenciar”, adverte. 

Para compor a pesquisa, Reni também ouviu 15 mulheres e 13 homens com diabetes, além de familiares presentes à entrevista. Prevaleceu entre os pacientes a ideia do diabetes como uma doença do ‘excesso’: uma alimentação inadequada que causa acúmulo de ‘açúcar no sangue’; o sangue ‘engrossa’; o pâncreas fica sobrecarregado; e surgem as complicações biológicas (vasculares, por exemplo). “É uma interpretação que combina explicações biomédicas, ressignificando-as conforme seus conhecimentos e representações sobre saúde, doença e corpo (anatomia e fisiologia)”, analisa a pesquisadora.

Os entrevistados tinham diabetes tipo 2, que, em geral, não requer indicação de insulina (a doença é controlada pelo uso de medicamentos orais). O fato de não apresentarem sintomas, mas necessitarem de tratamento, gerava uma situação ambígua. “Com o tempo, essa situação é elaborada pela pessoa com diabetes: ela vai ‘aprendendo’ a conviver com essa condição e desenvolve o sentimento de ‘controlar’ a doença, em vez de ser ‘controlada’ pela enfermidade”, afirma a autora. “Em alguns casos, no entanto, há rejeição das imposições da doença, situação mais comuns entre os homens”, diz Reni, que, no livro, também discute sutis variações nas formas de pensar e lidar com o diabetes quando crivadas pela perspectiva de gênero.

A autora ressalta, ainda, que a pessoa não é um ser passivo diante do adoecimento e das recomendações médicas. Ela precisa equacionar cotidianamente a necessidade de tratamento médico com uma série de outras demandas sociais não médicas, como os compromissos com a família, o trabalho e a religião, entre outras. “Mesclam-se a essas demandas a influência de conhecimentos e ideias prévios sobre saúde, doença, corpo, medicamentos e diabetes, aliados às sensações corporais que fazem com que o sujeito ressignifique a vivência e a forma de lidar com a enfermidade”, analisa a pesquisadora.  “Todos esses aspectos, portanto, devem ser levados em conta para a participação efetiva do sujeito no tratamento”, conclui.