A página Facebook, que conta com mais de 60 mil seguidores, exibe uma série de imagens da cidade, como a Praça Paris dos anos 1930, os bondes passando pela avenida Rodrigues Alves, na Zona Portuária, no início do século XX, ou um arborizado Jardim do Méier da década de 1920, tornou-se tema da dissertação de mestrado de Thiago Mendes, “Memória e cidade sensível: Fortaleza e Rio em comentários no Facebook”. Bolsista de Mestrado Nota 10, da FAPERJ, com orientação do professor José Cardoso Ferrão Neto, do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), ele analisou, pelos comentários postados, como os visitantes das duas páginas no Facebook percebem cada cidade. Mendes é de Fortaleza e vive há dois anos no Rio. Conversando com ele, a reportagem do Boletim FAPERJ concentrou-se apenas na página do Rio de Janeiro.
“O interesse dos internautas é mais pelo que lhes traz a memória dos lugares. E, pelo que pude perceber, essa memória se centra bem mais nos sentidos, nas lembranças olfativas, gustativas e auditivas, do que meramente no visual”, comenta Mendes. Ele explica que nessas lembranças entram também as histórias relatadas por pais e avós. “É aquele comentário que fala como o avô contava que pegava o bonde no Largo da Carioca, ou como gostava que os pais a levassem para tomar o frapê de coco do Bar Simpatia, no Centro da cidade, cujo sabor lembra até hoje.”
Apresentadas com o devido crédito, as fotos trazem comentários que situam a época em que foram tiradas e um pouco da história do lugar. Todas foram garimpadas na Internet, muitas delas da coleção Augusto Malta, pertencente ao acervo da Biblioteca Nacional e disponibilizada ao público na rede. Além de avaliar os comentários postados, Mendes também entrevistou o criador e administrador da página, Bruno Macedo, que, como seria de esperar, se revelou um apaixonado pela memória da cidade.
Embora haja vários comentários sobre o Méier e adjacências, as áreas mais fotografadas foram da região central, seguidos dos bairros da Zona Sul. Em muitos comentários, Copacabana ainda aparece como o epíteto da Cidade Maravilhosa. “Há espaço para histórias, para troca de experiências e até debates entre os seguidores da página, que reúne usuários de diferentes gerações, como é próprio das comunidades virtuais. Entre as diversas lembranças citadas, casos corriqueiros aparecem em posts, como “eu corria para não pagar o bonde no Tabuleiro da Baiana. Espero que meus filhos não leiam isso”.
Mas, na maior parte das vezes, os comentários estão impregnados de nostalgia, até mesmo entre jovens que vivem em uma época tão distante daquela em que as fotos foram tiradas. “Essa nostalgia muitas vezes fala de uma cidade e de um passado idealizado”, explica. Essa idealização também é associada aos tempos em que o Rio de Janeiro foi capital da República, em contraposição a seu declínio, depois que a capital foi transferida para Brasília. “Alguns visitantes do site chegam a dizer que ‘foi um crime terem tirado esse título da cidade’, vendo aí um começo de decadência da ex-capital”, cita Mendes.
Mendes analisa que, como em toda idealização, entra aí certa dose de imaginação. “É quando os internautas devaneiam em cima da foto, fazem confissões, dizendo, por exemplo, como gostariam de usar aquelas roupas do início do século XX.” Essa nostalgia é o que leva ainda os internautas a associarem as imagens do passado a uma época de vida melhor e mais calma, muitas vezes esquecendo as muitas dificuldades e a pobreza reinantes. “A grande maioria das pessoas enxerga nessas fotografias da cidade uma imagem idealizada de tranquilidade; poucos refletem sobre a situação real. Falam, por exemplo, da elegância das roupas da época, lembrando uma personagem de novela ambientada no começo do século XX, exibida em emissora de televisão. Poucos refletem que o Rio é uma cidade onde faz calor, e que nossos avós deviam suar terrivelmente vestindo aquelas roupas pesadas, mais apropriadas a climas europeus. Até que alguém mais realista coloca um post na página comentando que a cidade fedia, tanto do suor das pessoas, como pelos excrementos dos animais e a variada sujeira das ruas.”
Ele conta que alguns comentários mostram também antigos hábitos: "Ir à cidade, expressão que ainda se ouve mesmo nos dias de hoje na verdade significava ir até o Centro e, na maioria das vezes, era um acontecimento principalmente para quem morava nas regiões mais distantes, ou para os mais humildes." Com o testemunho de quem tem autoridade para falar, o administrador da página comenta: "Meus avós moravam numa rua não asfaltada de Marechal Hermes. Eram de uma pobreza de dar dó, mas quando iam ao cinema no Centro, saíam impecavelmente vestidos. Ir até a cidade, naquela época, era algo importante.”
Mas se o passado muitas vezes é idealizado, o futuro também é, como se ele trouxesse a solução de vários problemas contemporâneos, iniciados na modernidade. Imagens da Zona Portuária, por exemplo, para diversos internautas, remetem imediatamente às obras de modernização para a realização das Olimpíadas de 2016. “A cidade, hoje, é muito vista como Cidade Olímpica. E, apesar do incômodo no trânsito, as obras são apontadas como algo que vai mudar o cenário da cidade para melhor, que pode devolver aos habitantes um pouco da antiga paisagem”, explica Mendes.
É bem verdade que, como é próprio das comunidades virtuais, há vozes divergentes e, às vezes, até debates. A imagem de um dos pavilhões construídos durante a gestão do prefeito Carlos Sampaio para a Exposição Universal de 1922, que marcou os 100 anos da independência brasileira, mostra também o desmanche do morro do Castelo, arrasado para facilitar a circulação do ar, que, ainda segundo o discurso sanitarista do século XIX, melhoraria o clima e com isso a saúde de seus habitantes. As imagens também mostram que o casario do alto do morro servia como moradia para a população pobre da cidade, principalmente negros e mestiços.
É uma das fotos que levam à discussão sobre questões sociais. “Há comentários que dizem que, por conta de um princípio de favelização, o morro tinha mesmo que ser derrubado. Outros defendem a permanência, já que a área abrigava as primeiras construções coloniais, dos tempos da fundação do Rio de Janeiro. Alguns posts diziam: ‘Foi um crime histórico contra a memória da cidade’; ‘Então, a solução para a pobreza seria derrubar todos os morros?’; e ‘Teria que haver uma UPP em pleno centro da cidade’, escrevem os internautas, empenhados num debate acalorado, em que afloram uma separação entre ricos e pobres, favela e asfalto, e ressentimentos mútuos."
Em sua conclusão, Mendes destaca que o ponto principal de sua dissertação foi perceber que, mais presente do que a memória institucionalizada, para cada um dos chamados “lugares da memória”, como é o caso dos monumentos e prédios históricos, criamos “memórias do lugar”, vividas nas experiências do cotidiano de cada um. “Há internautas para quem Copacabana remete aos passeios que faziam quando criança, ou ao ponto da praia que frequentavam. Para outros, o Centro da cidade pode ser as lembranças do chope no bar Simpatia, com amigos.” Ele relata que o que leva o visitante da página a tecer seus comentários são as experiências vividas, ou mesmo aquelas que são contadas por parentes ou pessoas próximas, relembradas nas histórias e casos contados para filhos e netos. “E a fan page recompõe um pouco dessas memórias pessoais, compartilhadas pelos internautas, formando um mosaico de pensamentos e histórias sobre a cidade.”
Para ver outras imagens antigas do Rio de Janeiro, confira a a página: https://www.facebook.com/ORioDeJaneiroQueNaoVivi.
Assessoria de Comunicação FAPERJ