A estratégia da nova vacina se baseia em desenvolver versões recombinantes de proteínas encontradas no esporozoíto – forma do parasita presente na glândula salivar do mosquito transmissor e que infecta o ser humano. A proteína em questão é homóloga à que está sendo usada em outra vacina em estágio mais avançado contra o Plasmodium falciparum, o parasita de malária mais comum no continente africano.
“Com base no sucesso dessa proteína de P. falciparum, pensamos em tentar algo parecido contra o parasita que acomete as Américas. Vê-se que na África a proteção também não é alta, de 30% a 40%, mas tem diminuído as formas graves da malária falciparum e atrasado o primeiro episódio de malária em crianças, reduzindo a mortalidade infantil”, disse Irene Soares, professora da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (FCF-USP) e autora correspondente do artigo com resultados da pesquisa publicado na revista Frontiers in Immunology.
A candidata à vacina contra o P. falciparum, a RTS,S/AS01, já passou por testes clínicos de fase 3 – a pesquisa clínica é usualmente classificada em quatro fases – e recebeu uma sinalização positiva da OMS para um estudo piloto de implementação. De acordo com Soares, a vacina não será para uso geral na população. “Talvez para crianças e pessoas não imunes, como viajantes que vão para a região endêmica. É uma forma de não ter essas formas graves da doença”, disse Soares.
A iniciativa de desenvolver uma vacina contra o P. vivax partiu de um grupo de pesquisadores do Centro de Terapia Celular e Molecular da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e da FCF-USP. O projeto é apoiado pela FAPESP no âmbito de um Projeto Temático e contou com a colaboração de uma equipe internacional, com pesquisadores do Instituto Pasteur (França) e da Agency for Science Technology and Research (Singapura), entre outros.
O P. vivax tem particularidades que dificultam o desenvolvimento de vacinas. Diferentemente do parasita mais comum do continente africano, a proteína-alvo do P. vivax tem três formas alélicas, ou seja, três variantes na natureza chamadas de VK210, VK247 e P. vivax-like. Trabalhos prévios realizados nas décadas de 1990 e 2000 mostraram que as três variantes circulam pelo Brasil, com prevalência da VK210.
A proteína circumsporozoíta (CS), a mais abundante na superfície do parasita, é velha conhecida da ciência, tendo sido caracterizada pelos pesquisadores brasileiros Ruth e Victor Nussenzweig, da New York University, a partir da década de 1960.
A molécula está envolvida nos estágios iniciais de invasão de células do fígado de mamíferos infectados. Isso faz com que ela seja um alvo importante para anticorpos e outras células do sistema imunológico.
“Como a proteína do P. vivax tem três formas alélicas, fizemos também uma versão híbrida com essas três variantes reunidas. Ela contém um pedaço de cada uma. Caso a vacina fosse baseada em uma única variante, ela não protegeria contra as outras e não teria boa abrangência”, disse Soares.
Após produzir a proteína fusionada, os pesquisadores partiram para a etapa de induzir anticorpos contra as três variantes. Mas, para saber se os anticorpos reconheciam o parasita, a equipe contou com a colaboração de pesquisadores da Agency for Science Technology and Research de Singapura.
A agência cedeu os esporozoítos extraídos da saliva do mosquito. Nos testes, os anticorpos gerados – tanto a mistura de proteínas quanto a proteína de fusão – foram capazes de reconhecer a molécula nativa por imunofluorescência.
O teste em animais contou com mais um desafio: camundongos não são infectados pelo P. vivax. Para resolver o problema, a equipe controu com a colaboração do Instituto Pasteur (França), onde foi testado um parasita transgênico – o esporozoíto do Plasmodium berghei (que infecta o camundongo) capaz de expressar as repetições da proteína VK210 de P. vivax (Pb / PvVK210).
“É por isso que o artigo tem vários autores, de diferentes centros de pesquisa. Foi um trabalho muito complexo e com várias etapas”, contou Soares.
No laboratório de Rogerio Amino, pesquisador brasileiro do Instituto Pasteur (França), coautor do estudo, os camundongos que receberam a formulação da vacina foram protegidos contra a infecção de esporozoítos quiméricos de P. berghei, expressando repetições de proteína do circumsporozoíto de P. vivax.
“Foi uma colaboração importante. Os animais receberam três doses da vacina híbrida e depois foram desafiados com o parasita transgênico. Quatro dos seis camundongos imunizados estavam livres da infecção até o décimo dia após o desafio, enquanto todos os animais do grupo controle (não imunizados) ficaram infectados após quatro dias”, disse Soares.
De acordo com a pesquisadora, ainda faltam etapas a cumprir até que a vacina se mostre comercialmente interessante e possa ser uma alternativa contra o P. vivax. O imunizante ainda precisa, por exemplo, ser testado em outros mamíferos antes da etapa de ensaios clínicos.
A primeira autora do artigo, Alba Marina Gimenez, do Centro de Terapia Celular e Molecular da Unifesp, realizou recentemente um estágio na University of Oxford, no Reino Unido, onde teve a oportunidade de testar parasitas transgênicos capazes de expressar cada uma das três variações da proteína (alelos VK210, VK247 e P. vivax-like). O trabalho teve apoio da FAPESP.
Parasitas dormentes
Um dos grandes desafios da nova vacina é conseguir combater também os parasitas que, passada a fase aguda, permanecem no fígado na forma dormente e podem desencadear outro episódio da doença meses depois de o paciente ser infectado. Essa é outra particularidade do P. vivax.
“Quando o mosquito pica, uma parte dos parasitas inoculados adquire uma forma dormente (hipnozoíto) no fígado, enquanto a outra parte vai causar a doença. Portanto, quando os patógenos no sangue são tratados, aqueles que estão ‘dormindo’ continuam prontos para atacar novamente. O remédio pode funcionar no primeiro momento, mas, depois de alguns meses, o parasita pode ‘acordar’ e voltar à circulação sanguínea, causando recaída”, disse Amino, coautor do estudo.
Amino é também um dos autores de um trabalho publicado na Trends in Parasitology segundo o qual uma vacina contra esporozoítos de P. vivax com moderada eficácia contra a infecção primária, poderia reduzir substancialmente a transmissão de hipnozoítos, evitando recaídas.
“Seria muito interessante se houvesse uma vacina que diminuísse significativamente o número de hipnozoítos, ainda que não fosse 100% eficaz contra a primo-infecção. A vacina que está sendo desenvolvida contra o P. vivax tem uma boa eficácia, mas ainda não foi testado se pode ou não diminuir as recaídas. Se ela funcionar também contra os hipnozoítos será um grande avanço”, disse.
O artigo Vaccine Containing the Three Allelic Variants of the Plasmodium vivax Circumsporozoite Antigen Induces Protection in Mice after Challenge with a Transgenic Rodent Malaria Parasite (doi: 10.3389/fimmu.2017.01275), de Alba Marina Gimenez, Luciana Chagas Lima, Katia Sanches Françoso, Priscila M. A. Denapoli, Raquel Panatieri, Daniel Y. Bargieri, Jean-Michel Thiberge, Chiara Andolina, Francois Nosten, Laurent Renia, Ruth S. Nussenzweig, Victor Nussenzweig, Rogerio Amino, Mauricio M. Rodrigues e Irene S. Soares, pode ser lido na Frontiers of Immunology em www.frontiersin.org/articles/10.3389/fimmu.2017.01275/full.
Agência FAPESP